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01/06/2010

Crise do capital e Psicologia. O que temos a ver com isso?

Por: Denise Deschamps e Eduardo J. Honorato


O que é a “crise” que tantos falam nos dias de hoje? Este vocábulo adentrou a vida dos brasileiros nos últimos meses, e consequentemente, os nossos consultórios e locais de atuação profissional. Teria a psicologia algo a dizer sobre o que se pensa hoje sobre a crise do capital que agita nossa “aldeia global”? Fomos  instigados por essa pergunta e ao analisarmos a questão, verificamos que se poderia pensar em inúmeras perspectivas sob as quais a psicologia teria como abordá-la, escolheremos então uma, dentre várias outras, que poderiam ser construídas.

O mundo se agita se preparando para o caos econômico, fatores estatísticos que aos olhos da prática da psicologia ganharão contornos de angústia individual ou no que temos deles presente em grupos. Os números caem sob cabeças que na relação com eles produzem felicidade ou angústia, falam de uma das tarefas humanas que, Freud já havia dito, seria sempre uma das nossas maiores fontes de gratificação e desespero: amor e trabalho.

No efêmero da pós-modernidade, naquilo onde hoje o ser se amarra ao TER, aos símbolos de status e cidadania que se constroem pelo prestígio social, o pertencer a essa ou aquela classe, como sobreviver à angústia de aniquilamento frente a um real que impõe hoje restrições ao projeto de vida de uma grande maioria? E como pensar isso nesse país Brasil, onde a distribuição de renda é uma das mais injustas do planeta?


Diria o compositor:

“Um homem se humilha

Se castram seu sonho

Seu sonho é sua vida

E vida é trabalho...”

Parece que o “tubarão” chamado de “acumulação de bens” nos ameaça hoje de várias frentes. Seria a tal crise cíclica do capital já descrita por Karl Marx e Engels²? Estariam os mais aptos devoradores incorporando os menos aptos(menores?) investidores financeiros do planeta? O quanto disso nos tem sido propagado em concepções que adentram nosso imaginário, em nossa vida cotidiana? Fazer perguntas simples como essas, poderão nos dar a dimensão do que tem a psicologia a dizer sobre tudo isso. Se você sente angústia e depressão, quem sabe procurar a fluoxetina não seja o melhor caminho?

Pensar o mundo onde se vive, trabalha e ama pode ser um começo de mudanças possíveis.

Pois o que é exato também para os seres humanos com seu trabalho, é exato também para os seres humanos entre si”(Karl Marx¹)

Entre capacitar esse homem para a linha de produção e pensar esse homem como construtor de seu meio, a psicologia precisará cada vez mais, problematizar sua prática e compor construções teóricas emprestando elementos de outras áreas de estudos. Falará ao mesmo tempo desse homem em seu meio ambiente cultural e falará dos instituintes* dessa cultura, daquilo que é instituído como algo de aquisição de melhoria de vida e naquilo que se institui como modelo repressivo, causador, portanto, do adoecimento desse sujeito que forma e é formado pelo mundo onde atua.
Muitas foram às escolas em Psicologia que tentaram entender esse homem atrelado ao modo de produção, ligado ao que permeia seu mundo econômico e atravessado e sustentado por questões de ideologia. Pensamos esse homem como um ser social desde o momento de sua concepção, antes mesmo de nascer, traz já marcado todo um imaginário que lhe impõe um lugar que é também social. Nascer, viver e morrer, caminho singular de cada sujeito, mas que é todo tempo marcado também, pelas questões de seu tempo, do tempo econômico, político e ideológico onde esse sujeito constrói suas relações de vínculo.
Hoje a ciência que estuda a subjetividade se vê às voltas com aquilo que R.  D. Laing já nomeava como “fatos da vida”, como esse algo que fala de uma subjetividade, que pode ser encarada enquanto construção do sujeito ou mesmo de toda malha que entrelaça o coletivo.
Há cientistas incapazes de conceber que com seus métodos excluem o tipo de informação que não desejam, a fim de destacar o tipo de informação que desejam”.³
Essa afirmação de Laing, traremos para nossa análise pelo fato de que queremos problematizar os instrumentos com os quais a psicologia trabalhará seu objeto de estudo, o psiquismo, frente ao momento atual, a crise contemporânea que hoje atravessa um momento delicado naquilo que fala da distribuição de riquezas no mundo.

Entrevistamos para entender melhor a questão sob o prisma das ciências econômicas, o Dr Alcino Ferreira Camara Neto, Decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da UFRJ(CCJE), que gentilmente nos cedeu uma sucinta análise feita em um brilhante artigo de sua co-autoria(Revista Versus4) sobre o momento que atravessamos:

A crise financeira, com epicentro nos Estados Unidos, e que começou em agosto de 2007, e tomou proporções dramáticas após o colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008, rapidamente se tornou a maior recessão desde a dos anos 80, e pode se tornar a maior desde a Grande Depressão.

A América Latina, para se ter uma idéia, cresceu aproximadamente 2,5% per capitã de 2003 a 2007. Na verdade, a crise anuncia o fim do ciclo do modelo neoliberal tanto no centro quanto na periferia.

Se a crise norte-americana reflete os limites da estratégia de expansão da economia no centro, em particular a necessidade de altas taxas de endividamento, em última análise insustentável, por parte das famílias, frente a uma distribuição de renda cada vez pior e salários estagnados, suas repercussões na América Latina revelam o alcance restrito da estratégia de desenvolvimento da região.

As exportações de commodities e as remessas dos imigrantes constituem-se nas fontes primordiais do crescimento, e dos superávits em conta corrente.
A expansão da dívida per se não é nem boa nem má, como já indicavam os autores da
chamada escola das finanças funcionais. O uso da dívida, isto é, sua função social é que pode, ou não, ter méritos, e são estes que devem ser julgados.

A crise recente começou com os problemas do mercado chamado de subprime. O termo refere- se ao mercado de empréstimos imobiliários para clientes que não tem acesso ao mercado bancário, em geral porque não tem rendimentos ou colateral para aceder a este mercado.
Assim, os empréstimos foram contraídos com taxas flutuantes, e a capacidade de pagamento encontrava-se limitada à possibilidade de continuar se endividando.

Os bancos, e outras instituições financeiras, então, securitizavam e vendiam aos investidores títulos cujos rendimentos dependiam dos empréstimos no mercado do subprime.

Vários fundos de pensão, bancos comerciais e de investimento, e outros agentes econômicos tinham em carteira quantidades extensivas destes títulos. O estouro da bolha do mercado imobiliário implicou que o valor de várias dessas carteiras sumiu de um minuto para o outro.
Enquanto nos anos 30 a crise de liquidez estava associada a uma corrida contra os bancos, que podia ser resolvida injetando dinheiro, a crise desta vez não é uma tradicional corrida bancária, mas foi provocada pela deflação dos ativos financeiros.
Deste modo, o processo de recuperação requer, mais do que injeção de liquidez, que não necessariamente vai estabilizar o preço dos ativos, uma elevação dos gastos do Estado diretamente. A política fiscal, e não a monetária, é o instrumento central nesta crise.

Do nosso ponto de vista uma lista mínima do que seria necessário para uma nova estratégia de desenvolvimento na região incluiria 4 pontos, a saber:
(i.) Controles de capital;
(ii.) Metas de crescimento além de metas in-flacionárias;
(iii.) Câmbio competitivo;
(iv) Expansão do gasto com infra-estrutura.

Com isso a política monetária seria liberada para seguir objetivos mais amplos do que meramente as metas de in-flação. Particularmente, o crescimento e o emprego devem ser parte integral da preocupação dos governos da região.

Em que medida todas estas propostas, mesmo em um momento de crise onde há maior abertura para inovações, são possíveis, é pouco claro, e nos permanecemos discretamente pessimistas.
Mas como disse o grande escritor mexicano Carlos Fuentes: ‘um pessimista é somente um
otimista bem informado’.”


Em que a psicologia  poderá se apresentar como um vetor dentro dessa conjuntura? De inúmeras formas, mas aqui abordaremos uma questão que lhe é sempre intrínseca e que muitos autores de correntes diferentes já se debruçaram para estudar a questão, como Michael Foucault, Herbert Marcuse, Adorno, Georges Canguilhem, Thomaz  Szasz, Franco Basaglia, entre muitos outros nomes. Em análises diferentes esses nomes nos remetem a especificidade do estudo da psicologia e o quanto ela tem de tendência ao que poderíamos chamar de “normalização”(Canguilhem)

Em um momento onde suas ferramentas serão consideradas úteis para selecionar sujeitos mais dóceis para as linhas de produção e ao mesmo tempo justificar a exclusão de uma mão de obra excedente cada vez mais numerosa. Ao mesmo tempo, a insatisfação crescente do sujeito que vê as possibilidades daquilo que lhe foi vendido como gratificação e realização, sendo tomadas, dia após dia, em seus investimentos. Como a psicologia lerá e proporá trabalho com essa angústia crescente no individual e no coletivo? Como trabalhará frente à angústia da exclusão e do crescimento da massa de miseráveis? O que no seu discurso irá se aliar ao que se rebela a opressão e exploração e o que justificará isso com conceitos de normatização do psíquico? Toda prática do campo psi é atravessada por questões ideológicas leve ou não, isso em conta. Se tomarmos em conta a análise da conjuntura econômica aqui apresentada, veremos que ao campo psi cabe, mais uma vez, se pensar como ferramenta ou dispositivo de controle ou como caminho organizador da justa pressão social. Pensar sua prática como alheia a essa questão torna-se algo, ao nosso ver, alienado e alienante da possibilidade de ser, na concepção integral que esse conceito traz e que é tão intrinsecamente relacionado à própria existência da psicologia, nos abstendo aqui de discutir sua inserção epistemológica, embora saibamos que essa seria, também, uma discussão importante na abordagem desse tema. Mas, nesse artigo, pretendemos apenas sublinhar e convidar ao debate do atravessamento desse acontecimento que agita o coletivo com a prática da psicologia no Brasil.

A questão se apresentará muito mais complexa do que convicções políticas ou visão de mundo, nesse sentido a buscada neutralidade dos instrumentos do campo psi se verão pensados a partir tanto da sua construção, quanto da utilização e possibilidades múltiplas de leitura. Pensar uma ciência neutra é hoje algo questionado, mesmo pelas linhas que tentam se adequar ao que conhecemos como “ciência dura”, tentando traçar uma similitude com as ciências naturais. Mesmo que não abordemos essas questões da epistemologia, teremos que pensar em uma prática que se compromete com um sujeito que sofre a partir de um contexto de opressão e exploração e onde nossas ferramentas de trabalho podem vir a servir, a estranhos “senhores”.  Pensar uma ética profissional, atrelada a uma práxis que se constrói no esteio daquilo que nomeamos como subjetividade.

A psicanálise há muitas décadas empresta sua leitura para pensar esse homem a partir de uma cultura, problematizando a relação do homem com ela e dela com o homem, em um entrelaçamento que muitos têm se debruçado a pensar sobre, construindo conhecimento e questionamentos.

Assim sendo, a psicanálise pode ser considerada como fato científico, como acontecimento histórico-social, como ideologia em si mesma ou como integrante de uma ideologia. E isto é válido para todas e para cada uma de suas componentes: a terapêutica, a investigação e a teoria” .

Poderemos supor inúmeras determinantes que se constituem naquilo que fala das metas sociais que se modificam a partir de contextos político-ideológicos e principalmente que esses se apóiam e ao mesmo tempo constroem tudo aquilo que entenderemos como ideologia, intrinsecamente ligada a esses ideais.

Tomemos então agora, em outra perspectiva possível, a afirmativa freudiana:
Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego”.6

Propomos pensar em um possível exemplo, permitamo-nos isso, e diremos que supor sabermos que, hoje, uma parte significativa de jovens, que têm acesso à graduação universitária, trazem em seus projetos de vida pensar a saída do país, tanto para continuidade de seus estudos como para busca de mercado de trabalho mais promissor. Será que poderemos entender isso apenas a partir de uma análise individual ou esse desejo nasce e se apóia em uma leitura, mesmo que inconsciente, de todo um campo político, econômico com sua ideologia que o sustenta?

Indo a um outro ponto, mais extremo de angústia, poderemos dizer que um homem se perdeu no alcoolismo por uma busca individual patologizada e “naturalizada” em diagnósticos ou pensar essa busca também a partir de uma análise nos assustadores índices estatísticos atravessados, por exemplo, com o não menos estarrecedor número de desempregados?

Pensar que refletir sobre isso não tenha importância na prática clínica, organizacional(recursos humanos), educacional, trânsito etc é supor um homem capaz de um isolamento impensável em relação ao meio onde ama e trabalha.

A luta antimanicomial no Brasil e o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental há muito trouxe para dentro de seu campo reflexivo e mesmo da construção da sua prática, questões como essa. Não podemos pensar que não existam  caminhos já construídos e trilhados, com boa base conceitual para pensar o momento hoje, grave esse momento, como pudemos entender um pouco, ajudados pela análise cedida pelo Dr. Alcino F.C. Neto, apresentada aqui nesse artigo.

Convidamos então para a permanente reflexão sobre o que se tem nomeado como “campo psi” onde tanto a psicologia, assim como o fazer psicanalítico se inscrevem.


 “É necessário redefinir o que se entende por realidade.
Concebemo-la como algo dado? Como fato consumado, como ordem estabelecida?
Ou como conexão e construção sempre móvel de nossa práxis?”
“A realidade humana é uma realidade psicológica e esta é sempre uma realidade social” 5b

¹Citado em  “Neurose e Classes Sociais” , Schneider, M. pág.125
²O salário, o Preço e o Lucro
³Laing, R. D. – Fatos da Vida – Editora Nova Fronteira
4 Alcino Ferreira Camara Neto e Matías Vernengo - http://www.versus.ufrj.br/
*determinantes inconscientes

5Questionamos a Psicanálise e suas Instituições” – ªJosé Bleger - “Psicanálise e Marxismo”
                                                                    bViolência e Agressão ou Violência e    
                                                                                           Repressão?” – Gilberta Royer de Garcia Reinoso

6 “O Ego e o Id” in “Obras Completas - vol XIX- Sigmund Freud


Denise Deschamps - Psicóloga com formação em Psicanálise, Socio-Análise e Clínica Infantil – IBRAPSI/RJ; Formação em Psicoterapia de grupos- “Ateliê de Emoções”- Psicólogos Associados; Supervisora Clínica em Psicanálise.  Atua em consultório particular, no Rio de Janeiro.

Eduardo J. S. Honorato é graduado pela Ulbra-Manaus. É Psicólogo Perito Examinador de Trânsito (UFSC) e Psicanalista . Atua em consultório particular em Manaus. Cursa Especializações em Saúde Pública (UFSC) e Docência Superior (UGF). Contato: http://eduhonorato.wordpress.com/ ou  eduhonorato@hotmail.com



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